sexta-feira, junho 16, 2006

Diga-me para quem governas...

As elites elogiam a firmeza de Lula à frente da estabilidade, mas não fazem questão de sua presença. O que sustenta a sua liderança é a consistência dos programas sociais. Lula é aceito por uns e detestado por outros, os que acham que política é coisa só para gente graúda
Revista do Brasil*

Há pouco mais de um ano, uma revista e emissoras de TV revelaram o flagrante do ex-diretor dos Correios Maurício Marinho empurrando 3 mil reais para o bolso do paletó e o país para um dos maiores turbilhões políticos de sua história. Marinho, sumido, foi demitido, anda com escolta policial e colabora com a apuração de irregularidades na empresa para a qual, por vias judiciais, tenta voltar. Sua queda em tentação foi o estopim de um bombardeio sem trégua ao governo que dura até os dias de hoje. Alianças foram abaladas, ministros e lideranças políticas e partidárias históricas foram varridos do poder. CPIs renderam holofotes diários a oposicionistas e um noticiário que um dia critica, outro agride. E o país?

O país mantém a economia sob controle e em fase de crescimento, bate recordes de exportação, de grão em grão reduz o desemprego e, segundo o IBGE, a renda do trabalho vem subindo e o nível de desigualdade, caindo. Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente, com um arranhão aqui, outro acolá, continua com elevada dose de aprovação e lidera todas as pesquisas de intenção de voto. Qual será o segredo de Lula: apanha muito porque pode se reeleger, ou pode se reeleger porque apanha muito? Paródias à parte, os institutos de pesquisas e estatísticas tentam explicar a energia do presidente com base em “indicadores favoráveis”. Mas dificilmente conseguem medir com precisão um outro indicador, cujos sensores são a pele, o estômago e o bolso de alguns brasileiros. Alguns milhões deles, que tiveram sua vida modificada, para melhor, por algum dos chamados programas sociais.

Para a filósofa Marilena Chauí, professora da USP, o governo não desmantelou programas sociais e não privatizou direitos sociais e culturais. “Ao contrário, ampliou as políticas sociais, inovou em várias delas, criou outras novas. Não distribuiu, mas transferiu renda. Contrariando o neoliberalismo, investiu prioritariamente os fundos públicos no pólo da força de trabalho”, analisa, em depoimento ao livro Lições da Crise (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006).

Na prática

A família da estudante Sheila Albuquerque, 18 anos, que recebe recursos do programa Bolsa Família há dois anos, tem outra forma de traduzir essa mesma filosofia. Ela mora no município de Embu das Artes, na Grande São Paulo, com os pais e duas irmãs e está desempregada. “O dinheiro ajuda a comprar as coisas em casa, o gás principalmente. É pouco, mas é um dinheiro que chega fixo, você pode contar todos os meses. Este ano eu e minhas irmãs pudemos comprar material escolar, livros, que antes a gente não tinha”, relata Sheila. “O ideal seria que a bolsa fosse um pouco maior. Só o suficiente para a gente comprar um pouco mais de coisas em casa, sem ter de optar entre pagar uma conta ou comprar comida. Seria bom porque meus pais não teriam que discutir tanto por causa disso.”

O programa acima citado alcançou no ano passado 8,7 milhões famílias em situação igual ou pior que a de Sheila. E neste ano deve chegar a 11 milhões, mais de um quarto da população. São auxílios que variam de 50 reais a 95 reais por mês, dependendo do grau de pobreza, para famílias com filhos até 16 anos – desde que os mantenha na escola, com a vacinação em dia e sob acompanhamento médico regular. O Bolsa Família unificou ações antes pulverizadas (bolsa-escola, bolsa-alimentação, cartão-alimentação, auxílio-gás). Passou a atingir mais gente e foram celebrados convênios com estados e municípios para auxiliar na identificação dessas famílias e na fiscalização daquelas condicionantes. O programa não consegue resolver as brigas entre os pais de Sheila, mas numa casa em que a renda média por pessoa é inferior a meio salário mínimo, garantir o gás e o material escolar faz muita diferença.

Assim como faz diferença na renda do zelador Arnaldo Xavier de Araújo, usuário de medicamento de uso contínuo, ter acesso a uma “farmácia popular” instalada pelo governo federal no Centro de São Paulo. “Eu ganho 690 reais por mês e só com remédios gasto 300 reais, contando com os medicamentos que eu não encontro aqui”, expõe o zelador. “O que precisava era ter mais variedade”, opina. A dona de casa Francineide Marques freqüenta a mesma farmácia. “Compro tudo aqui, remédio para pressão, estômago e diabetes. Significa muito para mim. A renda em casa é de 500 reais. Com o dinheiro que eu economizo aqui, compro outras coisas, pago conta de luz e de água. Na farmácia, gastaria mais de 300 reais. Aqui não chega a 60 reais. Quando o médico passava remédio, antes, muitas vezes a gente nem tomava”, conta ela.

Uma economia equivalente a metade do salário é pouco? Então, o monitor de oficinas culturais Jesus Leopoldino filosofa mais um pouco. Separado e tendo de criar dois filhos, ele trabalha com 30 crianças atendidas pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) no Horto Florestal de Sumaré, na região de Campinas (SP). “Eu tinha que trabalhar na roça. Meus filhos ficavam na rua ou tinham que ir catar acerola comigo. Tinha medo que eles ficassem na rua porque lá a criança não aprende nada de bom. E em casa, sozinhos, é complicado. Quando descobrimos o Peti, mudou minha vida. Meu filho entrou com 7 anos e minha filha com 8. Hoje eu sou treinador de futebol das crianças, dou aula de capoeira, ensino artesanato. Tudo isso para mim tem sido uma grande vitória. E sei que meus filhos não estão sozinhos nem trabalhando”, define Jesus.

Taciana da Conceição, de São Vicente, no litoral de São Paulo, aos 16 anos passou a ser atendida pelo programa Agente Jovem, que atende adolescentes em conflito com a lei, concede de bolsas, oferece oficinas de capacitação e exige, em contrapartida, freqüência escolar e prática em trabalhos comunitários. Ela freqüentou oficinas de dança e hoje é professora. “Quando fiz 18 anos, me chamaram para dar aula de dança no Peti. Hoje recebo 467 reais. pago meu curso de Magistério e ainda consigo ajudar minha mãe. No Peti, formei um grupo de dança, o Play Dance, para as crianças interagirem com outras pessoas e conhecerem outros lugares”, conta. “A dança me tirou das armadilhas da vida, mostrou que eu era capaz de fazer as coisas. É por isso que meu trabalho vale a pena.”

Compromissos A programas sociais como esses – aos quais Marilena Chauí acrescenta a política de microcrédito e banco popular, economia solidária e incubadeiras populares, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, os incrementos no saneamento básico, na ampliação da rede elétrica destinada a regiões que não a possuíam, a demarcação das terras indígenas, ampliação da reforma agrária entre outros – os líderes da oposição costumam atribuir função meramente eleitoreira. Chegaram até a barrar a votação do orçamento porque transferia 3 bilhões de reais ao Bolsa Família neste ano.

O ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, entende o direito dos opositores de espernear, mas tem versão diferente. “O governo está cumprindo compromissos com os trabalhadores e com os pobres. Saiu do campo do clientelismo e do assistencialismo para políticas públicas efetivas. Os programas sociais incrementam a economia como um todo e contribuem para a diminuição da violência. Por isso, a sociedade tem avaliado o governo positivamente”, avalia.

O professor Juarez Guimarães, do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, considera que o respaldo de setores importantes dos s sociais reforçam a resistência de Lula, além de sua liderança histórica, construída nestas últimas três décadas, e do impacto das medidas de inclusão social que o diferenciam de governos anteriores. “Não houve a quebra dos laços entre os principais movimentos sociais e o governo Lula; há aí o que poderíamos chamar de um apoio crítico”, avalia Guimarães, organizador do livro Lições da Crise.

O historiador Wanderley Guilherme dos Santos prefere recorrer à própria mãe para explicar o desempenho do presidente: “Ela é operária e estudou até a quarta série. Minha mãe sempre fala que não tem nenhuma amiga dela sem emprego”, diz. A observação ecoa na vida do ex-desempregado Elton de Souza, que chegou a passar um ano e sete meses vivendo de pequenos bicos para sustentar esposa e filho: “Hoje estou de carteira assinada de novo em uma metalúrgica. Voltei a ter auto-estima”.

*Com reportagens de Flávio Aguiar e Guilherme Jeronymo, da Agência Carta Maior; Krishma Carreira e Xandra Stefanel

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