terça-feira, outubro 10, 2006

O Legacy e o sentimento americano de superioridade

Terça, 10 de outubro de 2006, 07h56
Luiz Gonzaga Belluzzo


Entendo pouco de aviões, aviônica ou aviação. Para ser justo, nada. Arrasto dúvidas pela vida. Elas crescem na proporção em que a idade me afasta das certezas. Entre outras, indago, sem respostas, se meus medos e inseguranças alcançam a temeridade de viajar nesses aparelhos que comprovam, para o bem e para o mal, o poder desafiador da razão humana em sua faina de dominar a natureza.

Confessadas as ignorâncias, minhas dúvidas vacilam em duvidar da constatação das autoridades brasileiras: o Legacy da Embraer trafegava na contramão. Estava a 37 mil pés, em rota de colisão com o Boeing da Gol. Deveria viajar no momento da colisão - rezam as normas do tráfego aéreo da região - a 36 mil pés. Com o tal de transponder ligado ou desligado, isto já bastaria para lançar presunção de culpa sobre a conduta dos pilotos que comandavam o jato executivo.

As autoridades brasileiras têm mantido a prudência. Evitam definir responsabilidades antes de concluídas as investigações que, diga-se, transcorrem de acordo com as recomendações de colunistas e editorialistas nativos. Na imediata posteridade da tragédia, os vigilantes jornalistas alertavam a consciência jurídica nacional para os riscos, sempre presentes entre os gentios, da contaminação das averiguações por um vírus perigoso: o anti-americanismo.

Mas, as demandas pressurosas de respeito a procedimentos acautelados e justos, foram atalhadas pela voz da boa consciência americana. O jornalista que viajava no Legacy já havia narrado, no New York Times, com minúcias de bom repórter, a saga de John Wayne e Hopallong Cassidy na tentativa de escapar das ciladas tecnológicas preparadas pelos índios brasileiros. Não eram bem os Cheyennes ou os Sioux, mas ainda assim, silvícolas perfeitamente habilitados no mister de preparar armadilhas para os compatriotas do General Custer.

A culpa foi atirada de volta: o sistema de controle de vôo da Amazônia não funciona e o avião brasileiro apresenta falhas nos aparelhos de detecção e de comunicação. Os meios de comunicação norte-americanos repercutiram ruidosamente a entrevista. Mas, já disse, minha ignorância não tem passaporte para viajar nas alturas da tecnologia aeronáutica.

O ponto é outro. Não se trata de aviões, de radares ou de transponders, mas de percepções e convicções que assolam o imaginário social de uma fração considerável do povo do norte e de seus dirigentes. Vou colocar as palavras na boca de um velho e bom representante do conservadorismo americano, aquele que preza as liberdades civis e os direitos fundamentais, Kevin Phillips.

Philips, no livro American Theocracy, cuida de examinar o excepcionalismo americano: "Há muitos séculos os americanos se consideram especiais, um povo e uma nação escolhidos por Deus para desempenhar um papel único e redentor no mundo. As lideranças eleitas tendem a promover e disseminar este excepcionalismo, sem incluir no discurso as necessárias cautelas históricas." Eisenstadt, um sociólogo de respeito nos Estados Unidos, já disse, a propósito, que a maioria silenciosa imagina sua sociedade como a utopia realizada. Neste início de século, graças ao desempenho de Bush filho e sua tripulação, a coisa se agravou, a ponto do país das liberdades palmilhar os perigosos caminhos que levam à derrocada do Estado de Direito.

O ultra-conservador Paul Craig Roberts, ex-assesor de Reagan e autor do livro The Tragedy of Good Intentions, está alarmado com as restrições impostas às liberdade civis pela nova legislação de segurança. Entre outras coisas, ela autoriza a prisão de suspeitos de terrorismo sem comunicação às autoridades judiciais. Roberts escreveu no site "liberal" ConterPunch, a propósito da reação de Bush ao relatório que atribuía o recrudescimento do terrorismo à Guerra do Iraque: "Se Bush pode acusar a CIA de 'abraçar a propaganda terrorista', qualquer colunista ou repórter que pretenda relatar os fatos com fidelidade pode ser colocado no campo 'contra nós' e preso por conceder conforto e ajuda ao inimigo".

Se assim é, os bravos rapazes que pilotavam o Legacy em céus estranhos, suspeitos e hostis, não podem, por definição, cometer erros.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular aposentado da Unicamp, consultor editorial da revista Carta Capital e vencedor do prêmio Juca Pato em 2005.
Terra Magazine

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