segunda-feira, novembro 01, 2010

A FAÇANHA DE DILMA: Pétalas à nova supermulher

Às 22h de ontem, ao falar pela primeira vez como eleita para a Presidência da República, Dilma Rousseff declarou que assumia a missão mais importante da sua vida. Esse é o seu grandioso desafio pessoal. Para os brasileiros, a eleição de Dilma significa muito mais. É uma façanha com alcance mundial.

A mineira-gaúcha Dilma Vana Rousseff, 62 anos, é desde ontem a primeira mulher brasileira a conseguir uma façanha com alcance mundial. A primeira presidente eleita do país, com 56% dos votos, assegura, já a partir da consagração pelos brasileiros, lugar numa galeria de mulheres únicas da política internacional. Pode se perfilar ao lado das primeiras-ministras Indira Gandhi, da Índia (de 1966 a 1977 e de 1980 a 1984), Golda Meir, de Israel (1969 a 1974), Margaret Thatcher, da Grã-Bretanha (1979 a 1990) e Angela Merkel (eleita em 2005 e ainda no poder).

Todas foram pioneiras em seus países. Todas superaram barreiras monumentais até chegar ao poder sempre dominado pelos homens. Dilma, a pioneira brasileira, também enfrentou dramas pessoais e políticos que testam resistências e acabam por contrariar o que parece improvável. Enfrentou o tucano José Serra em dois turnos exaustivos. Venceu desconfianças e ataques nem sempre leais numa das mais tensas campanhas eleitorais. Mas construiu sua história muitas décadas antes de cogitar uma candidatura ao mais alto posto do país. O Rio Grande do Sul foi o ambiente de algumas das provas mais duras a que se submeteu. Foi aqui que Dilma iniciou a caminhada que a levaria à Presidência.

– Ontem (sábado), estive em Minas, onde comecei a minha vida pessoal. Hoje (domingo), estou no Rio Grande, que me recebeu quando saí da prisão e onde estabeleci relações políticas – disse Dilma ao tomar café da manhã com correligionários, no Plaza São Rafael, antes de votar na Escola Estadual Santos Dumont, no bairro Assunção.

No final de 1972, Porto Alegre acolheu a mineira que tentava superar um trauma. Dilma decidiu morar na Capital depois de quase três anos de cárcere, de 1970 a 1972, acusada de conspirar contra o regime militar em organizações clandestinas. Veio ficar perto do segundo marido, o advogado Carlos Araújo, que estava preso sob a mesma acusação. Tentava reorganizar a vida, não mais como militante clandestina. Araújo seria libertado em junho de 1974, quando Dilma já frequentava a faculdade de Economia da UFRGS. Mas em outubro de 1977, aos 29 anos, Dilma sofre mais um baque.

Uma lista com os nomes de 96 funcionários públicos, que o então ministro do Exército Sylvio Frota define como comunistas, começa a circular pelo país. Estagiária da Fundação de Economia e Estatística (FEE), mantida pelo governo do Estado, vê seu nome na relação, ao lado de outros oito servidores gaúchos considerados subversivos. Perde o emprego.

O estágio na FEE, a partir de 1975, era a entrada tardia no mercado de trabalho. Abatida, muda-se para Campinas (SP), com a filha, Paula, de dois anos. Já formada, matricula-se no mestrado da Unicamp. Mas não desiste de fazer política.

Surge uma Dilma moderada

O economista Cezar Busatto, hoje secretário de Governança de Porto Alegre, lembra-se de Dilma já na militância consentida, em meados dos anos 70. Ela integrava o Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (Iepes), criado em 1972 pelo MDB, hoje PMDB. O Iepes abrigava jovens, nem todos ligados formalmente ao MDB, que se posicionavam à esquerda do partido. Dilma, sem filiação ao MDB, participava de grupos de estudos.

– Ela sempre foi uma mulher contundente. Fazia cara feia, era aguerrida – afirma Busatto.

O Iepes era um reduto legal de resistência de gente como André Foster, líder do instituto, Raul Pont, João Carlos Brum Torres e José Carlos Oliveira. Em determinado momento, a turma se dividiu: uns vislumbravam a reconquista da democracia apenas como uma etapa, para que, a partir dali, o país avançasse em direção ao socialismo.

Outros integrantes do grupo pretendiam brigar pela redemocratização, para que a partir daí o país seguisse seu rumo. Busatto recorda:

– O Iepes se dividiu em dois blocos. Foi uma discussão muito forte. O Foster era o apaziguador. Dilma ficou com o grupo mais flexível, que levava em conta as questões conjunturais e lutava pela volta da democracia.

Esta Dilma mais moderada em relação à moça que vivia em esconderijos e usava codinomes – Wanda, Estela, Maria, Lúcia –, até ser presa em 1970, participa do Movimento pela Anistia, que defende a volta dos exilados políticos, ao lado da grande amiga, a socióloga Lícia Peres. E adere, a partir de 1979, ao trabalhismo, com o retorno de Leonel Brizola ao país.

– Ela lutou para que o partido (PTB, depois PDT) tivesse um espaço de fortalecimento das mulheres. Criamos a Ação da Mulher Trabalhista, da qual ela foi presidente. Iniciamos um projeto de politização das mulheres.

O professor de administração da UFRGS Walter Nique, 59 anos, foi colega de Dilma na FEE. Também ele estava na lista de Frota. Exilou-se em Paris. Reencontraram-se em 1989. Ele dirigia na época a Faculdade de Administração, quando atendeu a uma convocação de Alceu Collares para elaborar o programa de governo do candidato do PDT ao Piratini.

Dilma assume a coordenação do programa. Collares é eleito em 1990. Quando da formação do governo, alguns trabalhistas estão certos de que Dilma, dedicada com afinco ao plano de governo, assumirá a Secretaria da Fazenda ou a Secretaria do Planejamento. Orion Cabral fica com a Fazenda. Nique é indicado para o Planejamento e oferece à ex-colega da FEE a grande chance da revanche. A economista assume, por indicação de Nique, em março de 1991, a presidência da fundação da qual fora expurgada como estagiária 12 anos e meio antes.

Dilma morou por dois anos em Campinas e retornou em definitivo a Porto Alegre, após frequentar o curso até 1983, para assessorar a bancada do PDT na Assembleia. Depois, foi secretária da Fazenda na prefeitura de Porto Alegre, no governo Alceu Collares, entre 1986 e 1989. Em novembro de 1993, assumiu a Secretaria de Energia de Collares. Lícia acompanhava todos os passos de Dilma:

– Ela é na essência uma pessoa solidária. Foi solidária quando fiquei viúva. E esteve sempre ao meu lado quando enfrentei um câncer.

A partir de abril de 2009, foi a vez de Dilma ter a solidariedade da amiga, ao descobrir que estava com um câncer linfático, já em campanha pela Presidência. Mas por que Dilma, que fazia política desde os 14 anos, decidiu enfrentar as urnas somente aos 62 anos? Por que somente Lula teria sido capaz de identificar na ministra a vocação para o palanque, o embate?

Uma militante de bastidores

Um argumento repetido à exaustão sempre apontou Dilma como uma técnica cuja capacidade foi posta à prova como secretária de Minas e Energia dos governos de Collares e Olívio Dutra (PT) e, depois, como ministra de Energia e da Casa Civil de Lula. Sempre apresentada como “um dos melhores quadros” do PDT no Estado, nunca emplacou como candidata. Era brilhante, ativa, estudiosa, mas vista invariavelmente, nos redutos políticos, como uma militante de bastidores, sem vocação pública.

Em 13 de dezembro de 1993, em convenção do PDT, o dirigente trabalhista Ciro Simoni chegou a apresentá-la como candidata ao governo do Estado em 1994:

– Imaginei que aquele era o momento para lançá-la. Ela poderia se apresentar como fato novo, por ser mulher, firme, forte, centrada – diz Simoni, deputado estadual eleito.

A indicação de Simoni, defendida pelo ex-prefeito de Canela José Vellinho Pinto, não prosperou. O ex-prefeito de Porto Alegre Sereno Chaise concorreu pelo PDT. Simoni recorda-se de que, ao defender a candidatura de Dilma, olhou em direção à economista:

– Ela apenas sorriu, não disse sim, nem não. Seu nome nem foi à votação.

Em 1997, Dilma é lembrada em prospecções do PDT para o Senado. Também não deu em nada. Em 1998, surge de novo como a provável indicação do partido para vice de Olívio Dutra, numa composição PT-PDT ao Piratini. Miguel Rossetto (PT) foi o vice.

Sempre fazendo política, em 2000 Dilma e trabalhistas liderados por ela e Sereno desafiaram o poder de Brizola e provocaram o maior racha no partido no Estado. Em 18 de março de 2001, o grupo filiou-se ao PT, com mais cerca de 300 dissidentes, num evento que teve Lula como padrinho. O então presidente de honra do PT nacional avalizava as fichas dos recém-chegados. Todos os mimos, no plenário da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, eram para Sereno, o decano da turma. Dilma, coadjuvante, só mais tarde se transformaria na estrela do grupo, como integrante da equipe que iria elaborar, em 2002, o programa de governo do petista à Presidência.

Conquistou a admiração de Lula. Virou ministra das Minas e Energia e depois assumiu a chefia da poderosa Casa Civil. Pôs à prova a capacidade de articular várias áreas do governo. Em setembro de 2009, sob desconfiança de parte do partido, que não a considera uma histórica do PT, é anunciada por Lula como candidata à sucessão. A adolescente militante que se protegia em codinomes, a formuladora de programas de governo, a gestora que conquistou Lula iria finalmente fazer política como nunca havia feito. Enfrentou o teste das urnas pela primeira vez, em dois turnos. Venceu.

Ontem, enquanto tomava o café da manhã com Dilma, Lícia Peres admirava a amiga e divagava:

– Acordei hoje e pensei: esse dia vai entrar para a história. Uma mulher eleita presidente. Parece um sonho.

Em 14 de dezembro, Dilma completará 63 anos. Dezoito dias depois, em 1º de janeiro de 2011, tomará posse na Presidência. Uma mulher, uma mineira-gaúcha, estará finalmente no poder, no 122º ano da República.

moises.mendes@zerohora.com.br

MOISÉS MENDES
 
Fonte: Zero Hora

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