sábado, agosto 21, 2004

Socialismo e governo Lula

Por Tarso Genro




Um dos equívocos mais recorrentes das políticas de esquerda, particularmente nos últimos 50 anos, foi o de identificar as crises sucessivas do desenvolvimento capitalista, em escala global, com a sua chamada "crise final", que, segundo os manuais soviéticos, seria "inevitável". Dessa visão também surgiu a tese da "inevitabilidade do socialismo", que fez nascer todo um receituário histórico, com dramáticas conseqüências para o "socialismo real". Era um receituário não só distante da dialética e do bom senso mas também -como se viu- extremamente autoritário e economicamente ineficiente.

Mesmo depois da quebra daquelas experiências burocráticas, essa visão mecanicista do socialismo persistiu. Embora a obra de Marx tenha remetido à possibilidade do socialismo para um patamar civilizatório superior, cuja origem seria o desenvolvimento extremo das forças produtivas capitalistas -porque o socialismo não poderia emergir da pobreza e do atraso-, os "elos mais fracos" do sistema é que foram rompidos, logo precisamente nos países mais atrasados. O resultado foi o que se viu: uma melhoria na situação econômico-social de grande parte da população mais pobre, mas, a médio prazo, firmou-se a organização da escassez somada à ditadura do aparato partidário.


Sustento, hoje, que o socialismo deve ser considerado uma "idéia reguladora" não só das políticas públicas (de total desigualdade para mais igualdade) mas também da ação dos partidos socialistas comprometidos com a democracia (de uma democracia puramente formal para uma democracia substantiva). Tal atitude promove conscientemente uma espécie de "moratória da utopia", não para esquecê-la, mas para regenerá-la. Como? Recriando as condições histórico-culturais para um novo projeto, com a formulação de algumas respostas.


A grande indagação hoje não é se o socialismo "morreu", mas se temos a possibilidade de um "outro socialismo"


A grande indagação que existe hoje não é se o socialismo "morreu", porque, afinal, o que existiu de socialismo nos países que fizeram revoluções -cujo resultado ninguém quer de volta- indica que ele nem sequer nasceu como modo de produção duradouro. O que vingou nos países do Leste foi um projeto de socialismo informado pelo messianismo proletário, mas não obviamente seu ideal social e moral. A grande e verdadeira indagação é, na verdade, se já temos ou não no horizonte a possibilidade de um "outro socialismo".


A posição sobre essa expectativa é fundamental para compreendermos a movimentação dos "sujeitos políticos", individuais ou coletivos, na conjuntura do governo Lula. É de uma dessas posições -termos ou não, no horizonte, um projeto convincente- que pode derivar a possibilidade de aceitarmos a repetição das experiências totalitárias e burocráticas do Leste: aquelas que venceram fruto de um projeto orientado pelas necessidades oriundas da miséria, e não por uma opção civilizatória.


Tomemos um exemplo concreto: se sou socialista e entendo que o socialismo ainda é inspirado em revoluções do Leste Europeu, é melhor que o governo Lula não "dê certo". Por quê? Porque o governo Lula quer democratizar a renda, gerar o crescimento econômico, promover a inclusão e novos padrões de coesão social. São objetivos, obviamente, que reduzem os eventuais componentes (pobreza e atraso) da tensão revolucionária clássica que gerou as experiências do Leste e que criaria -se ocorresse- condições para a emergência de uma "crise" revolucionária. Mas, se, como socialista, entendo que é preciso recriar o conceito de socialismo, é necessário ter um governo que faça o Brasil avançar para um novo e superior patamar cultural, político e econômico, então eu -como socialista- quero que o governo Lula "dê certo".


Com essa última hipótese, sustento que a possibilidade do socialismo -se escolhida pela maioria da sociedade- não será produto do atraso e da barbárie, mas originária de uma opção civilizatória de caráter democrático. Com um consenso que subordine a economia e o mercado às políticas sociais e também consiga redesenhar, no imaginário da maioria, um novo e melhor modo de vida.


Neste novo projeto -aliás- devem estar respondidas inclusive questões que o socialismo passado jamais tratou com dignidade. Por exemplo, a questão da finitude dos recursos naturais, as especificidades e a universalidade das questões de gênero, a questão da subjetividade humana, o direito à desigualdade para garantir a diversidade numa sociedade viva e dinâmica. São respostas difíceis, mas imprescindíveis para a reconstrução de uma nova utopia.

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