quinta-feira, outubro 14, 2004

QUERO UM MUNDO JUSTO!!

UTOPIA
"de optimo statu reipublicae deque nova insula Utopia"
Thomas Morus








É justo que um nobre, um ourives, um usurário, um homem que não produz senão objetos de luxo, inúteis a sociedade, é justo que tais indivíduos levem uma vida caprichosa e esplêndida por entre a ociosidade e ocupações frívolas, enquanto que um trabalhador, um carreteiro, um artesão, um lavrador vivem uma negra miséria, mal podendo alimentar-se? E, no entanto, os últimos estão amarrados a um trabalho tão pesado e tão penoso que as bestas de carga mal suportariam; tão necessário que nenhuma sociedade poderia subsistir um ano sem ele. Na verdade, a condição de uma besta de carga parece mil vezes preferível; esta trabalha menos tempo, sua alimentação não chega a ser pior, e é mesmo mais conforme aos seus gostos. E depois, o animal não teme o futuro. Mas qual é o destino do operário? Um trabalho infrutífero, estéril a esmagá-lo agora e a expectativa de uma velhice miserável no futuro; o seu salário diário não chega para todas as necessidades quotidianas; como, então, poderá ele aumentar sua fortuna e reservar dia a dia um pouco do supérfluo para as necessidades da velhice?

Não é iníqua e ingrata a sociedade que prodigaliza tantos bens aos que se intitulam nobres, aos joalheiros, aos ociosos ou a esses artesãos de luxo que só sabem lisonjear e servir a frívolas volúpias; quando, de outra parte, não tem nem coração nem cuidados para o lavrador, o carvoeiro, o carregador, o operário, sem os quais não existiria sociedade? Em seu cruel egoísmo, ela abusa do vigor da juventude dessa gente para tirar dela maior proveito; e logo que fraquejam esses pobres homens, sob o peso da idade e da doença, justamente quando tudo lhes falta, é que ela esquece das suas canseiras infindas, dos seus numerosos serviços, e os recompensa deixando-os morrer a fome.
E não é tudo.
Os ricos diminuem cada dia alguma coisa no salário dos pobres, não só por meio de manobras fraudulentas, mas ainda decretando leis com tal fim. Recompensar tão mal aqueles que mais merecem da república, parece-nos à primeira vista uma evidente injustiça; mas os ricos fazem desta monstruosidade um direito, sancionando-o em leis.
É por isto que, quando considero e observo as repúblicas mais florescentes hoje, não vejo, Deus me perdoe, senão uma conspiração de ricos a gerir do melhor modo os seus negócios sob o rótulo e o título pomposos de república. Os conjurados procuram por todas as manhas e 74 meios possíveis atingir um duplo fim:

Primeiramente, assegurar a posse certa e indefinida de uma fortuna mais ou menos mal adquirida; em segundo lugar, abusar da miséria dos pobres, abusar de suas pessoas, e comprar pelo preço mais baixo suas habilidades e labores. E essas maquinações decretadas pelos ricos em nome do Estado, e, por conseguinte, em nome dos pobres também, são transformadas em leis. Entretanto, embora tenham esses homens perversos partilhado entre si, com insaciável cobiça, bens suficientes à felicidade de todo um povo, longe ainda estariam da felicidade que gozam os utopianos.

Numa sociedade humanamente justa (UTÓPICA) a avareza é impossível, porque o dinheiro ali não é de uso algum, e por isso mesmo que abundante fonte de males não estancou ela? Que enorme seara de crimes não cortou pela raiz?
Quem não sabe, com efeito, que as fraudes, os roubos, as rapinas, as rixas, os tumultos, as querelas, as sedições, os assassínios, as traições, os envenenamentos; quem não sabe, digo, que todos esses crimes dos quais se vinga a sociedade com suplícios permanentes, sem, entretanto, poder preveni-los, seriam suprimidos no dia em que o dinheiro desaparecesse?
Então, desapareceriam também o temor, a inquietude, os cuidados, as fadigas e as canseiras. A própria pobreza, que parece ser a única a carecer de dinheiro, diminuiria no instante mesmo, caso o dinheiro fosse completamente abolido.

E veja-se esta prova evidente:

Suponhamos que ocorra um ano mau e estéril, durante o qual uma horrível fome rouba muitos milhares de vidas. Sustento que, ao fim da calamidade, se fossem pesquisados os celeiros dos ricos, neles se encontrariam imensas provisões de grãos. De sorte que, se essas provisões tivessem sido distribuídas em tempo, nenhum dos infelizes que morreram de fraqueza e debilidade teria sido tocado pela inclemência do céu e a avareza da terra.
Vedes pois, que, sem o dinheiro, a existência teria podido e poderá ser assegurada a todos; e que a chave de ouro, esta bem-aventurada invenção que nos devia abrir as portas da felicidade, no-las fecha impiedosamente.

Os próprios ricos, não o duvido, compreendem estas verdades. Sabem que é infinitamente preferível não lhes faltar jamais o necessário a ter em abundância quantidades de coisas supérfluas; que mais vale verem-se livres de males inúmeros do que se cercarem de grandes riquezas.
Creio mesmo que de há muito teria o gênero humano abraçado as leis de um mundo utópico, seja em interesse próprio, seja em obediência às leis do Cristo, pois a sabedoria do Salvador não poderia ignorar o que há de mais útil aos homens, e sua bondade divina certamente já soube recomendar-lhes o que sabia ser bom e perfeito.

Mas o orgulho, paixão feroz, rainha e mãe de todas as pragas sociais, opõe uma resistência invencível a essa conversão dos povos. O orgulho não mede a felicidade de acordo com o bem estar pessoal, mas de acordo com a infelicidade alheia. O orgulho recusaria mesmo ser Deus, se não lhe restassem mais infelizes a insultar e a tratar como escravos, se o luxo de sua felicidade não fosse mais exaltado peias angústias da miséria e se a ostentação de suas riquezas não
torturasse mais a indigência e acendesse o seu desespero.
O orgulho é uma serpente do inferno, que se introduziu no coração dos homens, que os cega com seu veneno e os afasta da senda de uma vida melhor. Este reptil agarra-se tão fortemente à carne que se torna difícil arrancá-lo.

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