sexta-feira, janeiro 28, 2005

O Itamaraty e o inglês

Por Renato Janine - Filósofo e professor na USP. Autor do livro "A sociedade contra o social – o alto custo da vida
pública no Brasil" (Companhia das Letras)

A língua inglesa continua sendo exigido e contando pontos no exame do Itamaraty, só que não é mais eliminatório. Isto é, deixou de ser o grande critério, numa das fases, para admitir ou não o candidato. Mas continua contando pontos

“Era só o que faltava”, assim reagiu Miriam Leitão, no programa Bom dia Brasil de quinta-feira, 13 de janeiro, à notícia de que a língua inglesa deixou de ser eliminatória no concurso de ingresso para a carreira diplomática brasileira.

Um pouco antes, o ex-ministro das Relações Exteriores do governo Fernando Henrique, o embaixador Luis Felipe Lampreia, dizia: “o inglês é para a diplomacia como a matemática para a engenharia”. Exageros, para dizer o mínimo.

O fato é: o Brasil tem pouco mais de mil diplomatas, enquanto o México, país de menor população e PIB, conta com três mil.

Três vezes mais! Precisamos hoje de um grande contingente de diplomatas altamente qualificados. E dispomos de uma das melhores escolas de formação de diplomatas do mundo, que é o Instituto Rio Branco.

Só que, de três mil ou mais candidatos que se têm apresentado a cada concurso, às vezes o Rio Branco não consegue preencher nem mesmo as cinqüenta vagas disponíveis. Isso é sinal, sem dúvida, da má qualidade de nosso ensino. Mas, como o Itamaraty não pode sozinho alterar tudo isso, o que cabe é discutir se as exigências para a admissão não estavam sendo excessivas.

Vejamos: o que se pede na prova de inglês é, disse-me o embaixador João Almino, ex-diretor do Instituto, “pós-proficiência”. Isto é, mais do que a proficiência. A proficiency em inglês é medida por dois exames principais, o ELTS e o TOEFL, um britânico e outro norte-americano, que são muito exigentes. Quem já tentou uma bolsa para país de língua inglesa sabe que muitos são reprovados. E é justo que assim seja, porque para estudar fora o mínimo é que você saiba a língua.

Lembro um exemplo clássico de exames para o Itamaraty, que era (no espanhol) traduzir uma frase que incluía o “presunto blanco”. Quem traduzisse por “presunto branco” estava fora. “Blanco” é, como diz a etimologia, o alvo. “Presunto” é presumido. “Presunto blanco” seria o alvo suposto, presumido. Será correto reprovar alguém num vestibular com uma pegadinha destas?

Mas será que um candidato a diplomata precisa ter mais do que a proficiência? Vejam, não estou falando do diplomata já formado, que precisa ter fluência total na língua mais importante do mundo atual. Mas do candidato, que vai estudar no Itamaraty com ótimos professores. Para entrar, não há dúvida de que ele tem de saber ler inglês perfeitamente, e falar e escrever bem. Para sair, precisa também saber entender o inglês falado, pronunciá-lo muito bem e escrever sem erro algum. Mas isso pode ser acrescentado durante o curso, que é muito bom.

Por isso, eu estranho a reação dos jornalistas e mesmo de alguns professores de cursos de relações internacionais, que – pelo que disseram – pareciam estar comentando uma decisão de só termos diplomatas que não soubessem nada de inglês! Na verdade, o inglês continua sendo exigido e contando pontos no exame do Itamaraty, só que não é mais eliminatório. Isto é, deixou de ser o grande critério, numa das fases, para admitir ou não o candidato. Mas continua contando pontos. Continua
valendo.

Portanto, só posso entender que Miriam Leitão, vários jornalistas e mesmo professores não entenderam o que está acontecendo.

A frase do ex-chanceler, embaixador Lampreia, representa outra espécie de equívoco. O inglês não é, nem pode ser, comparado à matemática! Esta ciência constitui a base de praticamente todo pensamento científico. Sem ela, ninguém entenderá nada de física, química, biologia. Sem ela, é impossível ser engenheiro. Mas isso porque todo o conhecimento que essas áreas transmitem é de base matemática.

Não é o caso do inglês. Essa língua é importantíssima. Sem ela, é difícil hoje alguém se atualizar nas ciências. Mas isso não quer dizer que a base do conhecimento científico, qualquer um deles, seja o inglês. Tal idioma é apenas o veículo no qual as comunicações se fazem. Podia ser o latim, o tailandês, o suaili.

Em outras palavras, um engenheiro não será engenheiro sem a matemática. A formação do engenheiro está, toda ela, baseada na matemática. Mas a formação do diplomata está baseada em muita coisa além do inglês.

Por exemplo, hoje o Brasil precisa de diplomatas que conheçam patentes. Um doutor em patentes é essencial para representar o País. Necessita também de secretários e embaixadores que conheçam bem nossa sociedade. Precisa de pessoas bem capacitadas em defesa e em segurança nacional.

Ou seja, nada justifica que o inglês seja o fator decisivo para termos o melhor diplomata possível! Para as coisas ficarem muito claras: o inglês é uma ferramenta essencial, mas não é a base do conhecimento do diplomata – tal como a matemática é o alicerce da ciência necessária ao engenheiro. O inglês é fundamental para várias coisas. Primeira, para a pessoa se atualizar. Para tanto, o inglês suficiente é o da proficiência. Não é nem necessário pronunciar ou escutar direito: é preciso ler. O diplomata, porém, precisa de mais do que isso. Terá de falar, ouvir e escrever bem. Só que essas capacidades ele pode aprimorar durante o curso.

Na verdade, o que está em jogo é outra coisa. Quando alguém reduz a competência do diplomata a um núcleo duro que seria o domínio da língua inglesa, ele está transformando o meio em fim, a ferramenta em fundamento, o instrumento em essência.

O diplomata precisa, antes de mais nada, defender os interesses e anseios do País. Para isso, ele precisa ter uma base sólida em ciências humanas e sociais e, e pendendo da área para a qual se dirija, em economia, direito, até mesmo engenharia e ciências físicas e biológicas. A diplomacia é o exemplo acabado de uma competência interdisciplinar. Por isso, não há sentido em sinalizar, para a sociedade brasileira, que o “sine qua non” da diplomacia é o conhecimento de um idioma
estrangeiro.

Penso, em última análise, que está em jogo aqui uma ideologia, que confunde a capacidade de se expressar nos fóruns mundiais (de ter o que dizer) com o domínio de um idioma (de saber como falar). Precisamos dizer. Para isso, é bom saber falar (o inglês), mas antes disso precisamos ter o que dizer: ter conteúdos.

Será coincidência que, no mesmo dia em que assisti na TV às críticas às mudanças no Itamaraty, também vi nela um economista brasileiro “do banco J. P. Morgan” pregando o aumento de juros na reunião da semana que vem do Copom, e mais tarde uma âncora de jornal noturno ridicularizando a Argentina, porque nossos vizinhos só estão dispostos a pagar o que podem pagar, de uma dívida externa que subiu astronomicamente devido à ganância dos bancos internacionais?

Muita gente parece acreditar que só é bom, no Brasil, o que estiver nos moldes impostos pelo Primeiro Mundo – que só é bom o que é a “lição de casa”, concebida pelo capital internacional. Não precisamos ser xiitas para tentar pensar com a própria cabeça.

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