domingo, setembro 17, 2006

Heloísa, a histriônica

ERNESTO MARQUES


No ano passado, o deslocamento de vários dos melhores intelectuais, quadros partidários e militantes de base do PT para alternativas à esquerda - ou pretensamente à esquerda - foi, sem dúvida, um sério abalo ao partido, que perdeu parte de seu extrato original. Mas o PT continua sendo um grande partido na política nacional, importante no jogo do poder, independente de quem se eleja presidente. Por outro lado, se conseguiu sobreviver a longos meses de bombardeio midiático com más notícias e três CPIs alimentando a fornalha, o partido de Lula gerou rebentos como o PSOL.

A sigla parida na dor da senadora Heloísa Helena ao ser expulsa do PT, carrega o que há de melhor e de pior no DNA petista. Cresci ouvindo a sabedoria popular dizer "quem herda não furta" - é verdade, absoluta verdade. Passado bem pouco tempo do instante entre gestação e parto, a militância do PSOL já vai viver uma talvez dolorosa prova de maioridade política. E quem vai colocar essa "companheirada" boa de luta na parede, ironicamente, é a histriônica candidata Heloísa Helena.

Comecei a pensar neste artigo ainda na semana passada, com a idéia inicial de abordar as contradições em torno da candidatura Heloísa Helena. Fazia conjecturas - nada, além disso, óbvio - sobre como essas contradições seriam sentidas pela militância do PSOL. Mas, antes de fechar o texto, queria ver a performance da candidata no Jornal Nacional. A contradição central é a descoberta de que o novo partido tem uma grande deformação congênita: o personalismo. Há razões históricas para justificar a centralidade e o peso da figura do presidente Lula em relação ao PT. O homem e o partido são duas instituições nacionais, queiram ou não os antipetistas mais empedernidos.

Já a relação entre Heloísa Helena e o seu partido-filho, gerado no ventre de uma personalidade política violentada em seus princípios, é totalmente diferente. Edipiana, talvez. Até aí, tudo bem. Mas o que suponho cortante, será a constatação, à minha vista muito próxima, de como o traço personalista se revela em cena, na cena pública, com os mesmos trejeitos de candidatos que bem poderiam estar incluídos entre os tais "delinqüentes da política".

Muitos dos mais valorosos militantes do PSOL são fundadores do PT. Sabem, desde a juventude, que um partido não se constitui em alternativa de poder de uma hora para a outra. É obra de uma vida. Não há hipótese de vingar, uma versão vermelha do PRN que elegeu Collor. Em comum nos dois casos, apenas o discurso moralista como norte da cruzada pessoal do caçador de marajás, em 1989, e da incansável perseguidora dos "delinqüentes da política" de hoje.

Outro dia ouvi uma amiga se referir a Heloísa Helena como "o braço esquerdo da direita". Discordo. A expressão sugere a idéia de alguém que se deixa usar em favor de outro, ou que está a serviço de outro. A não ser por obra e graça de um fenômeno eleitoral raro, à candidata do PSOL está reservado um honroso terceiro lugar na corrida presidencial. Mas a performance do tucano, de tão sofrível, anima as expectativas do PSOL. A candidata realmente acredita que pode passar Alckmin e ainda disputar o segundo turno. Até aqui as pesquisas demonstraram, principalmente as mais recentes, que HH e Alckmin disputam os mesmos votos. E se for assim, o segundo turno continua como hipótese menos provável.

Fato concreto é que a campanha cresce entre os mais ricos e mais escolarizados. Portanto, na busca por uns pontinhos a mais, é melhor começar a esquecer algumas coisas que a candidata já disse. A entrevista no Jornal Nacional prenunciou o que talvez explicará o naufrágio, mais adiante. A senadora, arrisco o palpite, será vítima do seu histrionismo e o seu partido, vítima do personalismo da candidata.

A psicanálise define o Transtorno da Personalidade Histriônica como um padrão invasivo de emocionalidade excessiva e comportamento de busca de atenção, que começa no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos. O termo poderia se aplicar à personalidade política da senadora. O talento em produzir cenas de efeito vem de há muito, e já foram incorporados ao seu estilo pessoal. Quem a conhece apenas pela imprensa já viu lágrimas e pedras rolarem em profusão, e por muitas vezes. Se as lágrimas comovem, transmitem sofrimento e sinceridade, as tantas pedras lançadas ao alto nos discursos gritados, fatalmente cairão - pelo menos algumas - sobre a cabeça. Quando rotula os adversários de "sabotadores do desenvolvimento nacional, delinqüentes da política", entre outras pérolas, HH se exclui de tudo de ruim que existe na classe política. Pura mesmo, só ela, verdadeira avis rara.

"Não sou cínica nem mentirosa", disparou da telinha da Globo. Mas, perguntada se pretende expropriar até mesmo de terras produtivas para fazer a reforma agrária em ritmo e qualidade suficiente para evitar as ocupações de órgãos públicos, Heloísa Helena negou e jurou fidelidade à legislação em vigor. Mas a expropriação de terras produtivas e improdutivas está no programa do PSOL. A senadora tenta enganar sua militância, toda a sociedade brasileira, ou virou uma candidata da ordem, fiel ao legalismo? Fazer reforma agrária capaz de silenciar os movimentos de luta pela terra é impossível dentro de um ordenamento jurídico que dá vida eterna à concentração fundiária.

Há outros dramas, como a controversa posição sobre o aborto, por exemplo. Uma coisa é a senadora exercer o seu direito de se posicionar contra o aborto. Outra coisa é passar por cima do mesmo direito de quem pensa diferente com declarações do tipo "não há nada mais primitivo do que o aborto". O que dizer do processo movido contra a ex-prefeita de Maceió, Kátia Born, homossexual assumida, "por sua vida sexual atípica", quando ambas disputavam o governo daquela capital? A candidata que beija crianças e cândidas velhinhas com a desenvoltura comum aos políticos tradicionais, aos delinqüentes da política, é a mesma que veste gibão e jaleco de couro como afirmação de sua nordestinidade, que monta em jegue, como fez FHC, e com certeza não resistiria a uma buchada de bode, principalmente se fotógrafos e cinegrafistas estivessem por perto.

É a mesma que, diante das câmeras, separa programa de partido de programa de governo, compromissos de partido de compromissos de governo. É a mesma que pouco antes da posse de Lula, aceitou pousar para uma patética e preconceituosa reportagem de capa de Veja, sob o título "os radicais do PT". Mais quinze minutos de fama. Os radicais do PT continuam no PT, tensionando partido e governo pela esquerda e assim, influenciando para que Lula faça um segundo governo mais petista. Já os radicais do PSOL têm motivos de sobra para colocar as barbas de molho. As contradições tendem a aumentar quando uma liderança ameaça se tornar maior do que o partido.

Ernesto Marques é jornalista e diretor da Associação Bahiana de Imprensa

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