Oct 21st, 2011 by Marco Aurélio Weissheimer.
Jornalistas têm o hábito de se achar acima do bem e do mal. É um vício de origem da profissão que, em um determinado momento, foi chamada de “quarto poder”. A imprensa ou “mídia”, como é mais conhecida hoje, poderia desempenhar legitimamente essa função, se o seu principal objetivo fosse a defesa do interesse público. Mas ela deixou de fazer isso há muito tempo, com a sua incorporação por grandes grupos empresariais que têm como principal objetivo o lucro. A maioria dos funcionários dessas empresas, porém, incorporam a mentalidade de classe de seus patrões como se ela fosse a expressão do interesse público. Não é.
O Rio Grande do Sul tem uma fonte rica em exemplos desse tipo de comportamento, que é a RBS, um grupo de comunicação construído à sombra da ditadura, que cresceu apoiando a ditadura e, mais tarde, o processo de privatizações. Não só apoiando, aliás, mas participando diretamente do mesmo, no caso da privatização da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT). Mas o assunto não é propriamente esse. Uma característica recorrente de profissionais da RBS – fenômeno aliás recorrente também em outras empresas de comunicação – é tomar qualquer crítica à imprensa como se fosse uma crítica a eles individualmente. Quem ousar “falar mal” da imprensa será rapidamente agraciado com uma bacia de adjetivos nada elogiosos.
Aconteceu mais uma vez agora com as declarações que o governador Tarso Genro fez ontem no Congresso Nacional da Campanha do Ministério Público contra a Corrupção. O que Tarso disse que despertou a ira de vários empregados da RBS? Ele criticou a imprensa “quando ela ocupa o lugar das instituições e realiza investigações sem técnica adequada”. “O julgamento e a condenação promovidos pela mídia suprime o direito da ampla defesa, o que remete às ditaduras”, afirmou. O contexto das afirmações, obviamente, é a mais recente denúncia feita revista Veja contra um ministro do governo Dilma, no caso o ministro dos Esportes, Orlando Silva.
Pode-se concordar ou discordar da afirmação de Tarso. A ira expressa nos comentários dos funcionários da RBS, porém, parece querer interditar o direito do governador ter opinião. Qual é o problema de criticar a imprensa? É proibido? Ela está cima do bem e do mal? As respostas de funcionários da RBS ao governador vieram imediatamente pelo twitter, não economizando adjetivos e sutilezas.
O comentarista de futebol Nando Gross qualificou as declarações do governador com “simplórias” e “superficiais” e passou a discutir com o assessor de imprensa do governador, Guilherme Gomes, pelo twitter.
A colunista política de ZH, Rosane de Oliveira, reduziu a fala de Tarso a uma “crítica ao jornalismo investigativo”. “Os petistas se mobilizaram para apoiar as críticas de Tarso Genro ao jornalismo investigativo. Por que será?” – escreveu.
Menos sutil, Giovani Grizotti antecipou o clima eleitoral da sucessão estadual de 2014: “Neste momento, a senadora Ana Amélia Lemos, no mesmo congresso, está defendendo a imprensa. Realmente, há políticos e políticos”.
Nada de novo sob o sol. Uma resposta mais inteligente às declarações de Tarso seria dizer que a presidenta Dilma Rousseff está legitimando as denúncias feitas pela Veja, já que elas vêm resultando, todas até aqui, na queda de ministros. A Veja está fazendo o jogo da empresa que a publica, que é oposição declarada ao governo federal e não esconde isso de ninguém. O “jornalismo investigativo” dessa publicação está a serviço dessa agenda e isso não é segredo para ninguém. Em suas críticas ao governador Tarso Genro, os funcionários da RBS, porém, apresentam-se como porta-vozes de uma suposta instituição chamada “jornalismo investigativo” que estaria acima dos interesses privados das empresas de comunicação.
A existência de um jornalismo desse tipo é fundamental para o avanço e a qualificação da democracia, mas, infelizmente, essa prática ainda é um projeto a construir no Brasil. Há ótimos profissionais dentro dessas empresas que lutam diariamente para fazer esse tipo de jornalismo, defrontando-se cotidianamente com os limites impostos pelos interesses privados que ditam, em última análise, as linhas editoriais de suas publicações. Não custa lembrar, a título de exemplo, alguns assuntos que parecem ser de interesse público e que não mereceram a atenção do “jornalismo investigativo” da RBS:
1. O uso privilegiado, por alguns jornalistas, de senhas exclusivas de agentes do Estado para acessar o Sistema Integrado de Consultas da Secretaria de Segurança Pública. O nome desses jornalistas não veio a público pois o processo corre em segredo de justiça. A RBS já ingressou na Justiça diversas vezes para quebrar sigilos de processos invocando o interesse público, como ocorreu recentemente com um vereador do DEM. Se esse pedido é negado, denuncia imediatamente cerceamento da liberdade de imprensa. Neste caso, não há tal interesse.
2. A existência de um braço midiático da fraude do Detran denunciado pelo Ministério Público Federal. Recordando o que diz a página 56 dessa denúncia:
“Os denunciados integrantes da quadrilha não descuidavam da imagem dos grupos familiares e empresariais, bem assim da vinculação com a imprensa. O grupo investia não apenas na imagem de seus integrantes, mas também na própria formação de uma opinião pública favorável aos seus interesses, ou seja, aos projetos que objetivavam desenvolver. A busca de proximidade com jornais estaduais, aportes financeiros destinados a controlar jornais de interesse regional, freqüentes contratações de agências de publicidade e mesmo a formação de empresas destinadas à publicidade são comportamentos periféricos adotados pela quadrilha para enuviar a opinião pública, dificultar o controle social e lhes conferir aparente imagem de lisura e idoneidade”.
3. O assassinato do sindicalista Jair Antonio da Costa, em 2005, e do colono sem terra Eltom Brum da Silva, em 2009, que até hoje permanecem impunes. Alguém aí leu alguma reportagem investigativa sobre essas mortes, sobre quem eram essas pessoas e como ficou a vida de seus familiares e amigos depois da ação policial truculenta que tirou suas vidas?
Não viu, nem verá, por uma singela razão: o jornalismo investigativo da RBS tem um corte classista. Ele é um leão contra agentes públicos corruptos (ou acusados de corrupção) e é um gatinho quando se trata de escrever algo contra corruptores ou contra um eventual anunciante (especialmente se for grande) envolvido em alguma denúncia. Ele vai até onde começam os interesses do grande capital que a RBS representa no Estado. Alguém viu alguma reportagem sobre quanto a Gerdau já ganhou em isenções fiscais no RS? Ou sobre quanto dinheiro a Aracruz despejou em publicidade na mídia gaúcha prometendo uma nova era de desenvolvendo com as plantações de eucaliptos? Essa é a crítica central que deve ser feita a um jornalismo que se apresenta como de interesse público mas que está subordinado, em últimas instância, aos interesses privados dos donos da empresa.
E antes que alguém venha buzinar, eu não me apresento como nenhum modelo de jornalismo investigativo nem pretendo ter a fórmula para ele. Mas sei bem o que ele não é. Perdi as ilusões com o jornalismo quando era editor do jornal NH, em Novo Hamburgo, e pedi demissão pelo fato de a direção da empresa ter retirado do jornal, na calada da noite, uma matéria sobre uma condenação de alguns jovens da cidade envolvidos em um caso de estupro. Foi retirada, aliás, por dois dias consecutivos, mesmo após um acordo feito com a direção que, digamos, “suavizou” o relato sobre o crime. Não bastou. Aparentemente, interesses de anunciantes poderiam ser afetados. Pedi demissão na hora, abri mão (burramente) de receber meu Fundo de Garantia e fui estudar Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o que foi uma das decisões mais acertadas da minha vida. Jornalismo investigativo e grande capital são (ou deveriam ser) inimigos.
Os funcionários da RBS fazem bem em defender a liberdade de imprensa e de expressão. Fariam melhor ainda se a defendessem por inteiro. Mas aí, talvez, teriam que trabalhar em outro lugar.
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