sexta-feira, setembro 23, 2005

Homens de bem?

Artigo: Homens de bem?
PAULO CÉSAR CARBONARI/ Professor de filosofia em Passo Fundo

Facilmente ouve-se: "É um absurdo desarmar homens de bem e deixar bandidos e marginais armados até os dentes". O pseudo-argumento mobiliza. Pensemos: existem homens de bem?

Homens de bem não existem, simplesmente porque não existem homens de mal (ou do mal). Ora, pensar assim é fazê-lo de forma maniqueísta e resulta na simplificação dos dilemas ético-morais. É por demais redutivo compreender a violência e seu enfrentamento com uma saída tão funcional, advogando o não-desarmamento (ou o armamento) como forma de proteger os homens de bem.

Italo Calvino, em O visconde partido ao meio (Cia das Letras), com a figura do visconde Dimezzato, indica quão insuportável é conviver com o absoluta e completamente bom e quão divertido é conviver com o absoluta e completamente mau e que qualquer das alternativas não faz mais do que atazanar a vida de todos.

É estranha a defesa da permissão para que "homens de bem" possam se armar como recurso de proteção.

Armas são instrumentos cuja finalidade é a produção de ferimento ou morte. Armas são feitas para isso. Sua perfeição está em cumprir bem sua finalidade. Um fabricante de armas precisa agir como Pedroprego, personagem de Calvino, e fabricar armas perfeitas em sua finalidade.

Armas não tornam humanos mais humanos. Como objetos da técnica, não têm finalidade prática. Confundir a finalidade dos objetos (poiética) com a finalidade dos humanos (prática) é confundir regiões da racionalidade humana. Seria como esperar que um objeto que cumpre bem sua finalidade pudesse, pelo seu simples uso, tornar mais perfeito o agente de seu uso.

Como esperar que objetos feitos para produzir o mal possam tornar "homem de bem" quem os utiliza? Ora, dirão, mas a finalidade do uso da arma é para produzir o bem, ou seja, proteger o agente que a utiliza, seus entes queridos, seu patrimônio. Isso leva a um imbróglio ético ainda maior.

Esperar que o bem buscado pelo agente que usa a arma pode ser alcançado mesmo quando os meios empregados para sua consecução são maus é confundir fins e meios, justificar meios, qualquer meio, inclusive meios maus, em vista de fins. A tortura perfeita, buscada por Pedroprego, ilustra bem em que isso se traduz.

Votar no referendo sobre desarmamento é fazer escolhas éticas. Afinal, enfrentar a violência exige recompor as bases de sociabilidade e de interação. Uma sociedade que quer ver controlada a violência precisa se repensar por dentro, refazer-se por inteiro, preferencialmente evitando maniqueísmos e instrumentalismos.

Publicado no jornal Zero Hora, de 23/09/2005

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