domingo, julho 22, 2007

Precisamos de um Feynman

Os colegas especializados em outras áreas costumam pegar no pé dos jornalistas de ciência, dizendo que a gente vive numa espécie de torre de marfim. Mas, mesmo que a tal torre tivesse quilômetros de espessura, nem assim nós estaríamos livres de encarar a tragédia do vôo da TAM. Aqui no G1 não foi diferente: passamos os últimos dias mergulhados em hipóteses de acidente, explicações didáticas sobre como funcionam o reverso ou os flapes do Airbus e minúcias do DNA forense. Mas falta uma contribuição possivelmente importante do lado da ciência: se a história de acidentes parecidos serve de guia, nós precisamos de um Richard Feynman agora.

Explica-se: o físico americano Richard Feynman, ganhador do Nobel, foi a figura-chave nas investigações do acidente que matou todos os tripulantes do ônibus espacial Challenger em 1986. Numa cena antológica durante o inquérito do desastre, Feynman fez, diante das câmeras, um teste com os chamados o-rings, anéis de vedação de borracha essenciais para o bom funcionamento do propulsor auxiliar do Challenger.

Estava muito frio no dia do lançamento do ônibus espacial, e Feynman suspeitava que a temperatura ligeiramente negativa tivesse estragado os o-rings. Assim, ele simplesmente jogou um exemplar dos anéis de vedação, preso com um clipe de papel, dentro de um copo com água gelada. Ao tirar o anel da água, foi impossível fazê-lo voltar à sua configuração original. Ele tinha se deformado e perdido sua função – uma das provas cruciais de que a Nasa tinha errado ao achar que a borracha resistiria às baixas temperaturas. A falha dos o-rings se revelou a principal causa do acidente, ao permitir um vazamento que acabou desencadeando a destruição da espaçonave.

A história em si é curiosa, mas o que está por trás dela é um conceito tristemente incomum no Brasil: independência. Feynman podia ser um vencedor do Nobel, mas sua especialidade era física quântica, não astronáutica. O que lhe permitiu derrubar o mito dos o-rings seguros foi justamente o fato de ele vir de uma área sem conexões de interesse ou estilo com a Nasa. Feynman não estava com o raciocínio viciado pelos hábitos de pensamento dos engenheiros e dos gerentes da agência espacial. E tinha nas mãos as duas ferramentas quase imbatíveis da ciência: o ceticismo e o método experimental.

O ponto aqui é o seguinte: literalmente todos os possíveis envolvidos no momento com a investigação do acidente da TAM têm interesse em determinado resultado da investigação. É preciso ressaltar que não se trata de manipulação consciente e direta dos dados da caixa-preta ou das imagens de vídeo, por exemplo. Basta que haja um viés inconsciente para interpretar os dados da maneira mais conveniente para cada parte interessada – a Infraero, a Aeronáutica, a TAM etc. É para evitar isso que nenhum teste científico de um remédio permite que ele seja considerado eficaz sem o uso comparativo de um placebo, uma substância inócua: sem esse controle, quem testa o medicamento tenderá a achar que ele funciona mesmo que os supostos efeitos provenham, na verdade, do organismo do paciente.

As investigações da tragédia em Congonhas só estão começando. Portanto, não é tarde para que o exemplo de Feynman e da Challenger seja seguido. O uso de especialistas independentes – de preferência o de um painel inteiro de gente que tenha o menor compromisso possível com todos os virtuais culpados pela tragédia – talvez seja a única maneira de obter uma investigação que não acabe em pizza e minimizar os riscos futuros de um desastre ainda mais horrendo.

Vale a pena concluir com a frase incluída por Feynman em seu próprio relatório independente – transformado em apêndice do relatório oficial – sobre o fim da Challenger. “Uma tecnologia bem sucedida precisa colocar a realidade na frente das relações públicas, porque não é possível enganar a natureza.”

Reinaldo José Lopes
http://g1.globo.com/Noticias/Colunas/0,,7271,00.html

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