quinta-feira, dezembro 02, 2010

REALISMO E POSITIVISMO



Por Osvaldo Pessoa Jr.

1. Realismo em Geral

Você é um realista? Distingamos primeiramente um sentido "ontológico" (relativo às essências das coisas, ao "ser" das coisas) e um sentido "epistemológico" (relativo ao conhecimento). O realismo ontológico é a tese de que existe uma realidade lá fora que é independente de nossa mente (ou de qualquer mente), de nossa observação. A negação desta tese é chamada de idealismo, que pode assumir várias formas, conforme veremos. O realismo epistemológico afirma que é possível conhecer esta realidade, ou seja, que nossa teoria científica também se aplica para a realidade não observada. Exploraremos inicialmente essas teses no nível do conhecimento individual, para depois analisarmos a forma que o realismo epistemológico assume quando consideramos o conhecimento científico – o chamado de realismo científico.

Para começar, devemos salientar que o termo "realismo" tem mudado de significado ao longo da história. Na filosofia medieval, o realismo era a tese de que os universais ("a árvore", "a cadeira", "o homem") existem antes das coisas particulares, tese esta que estava associada à filosofia de Platão. A esta posição se opunha o nominalismo, segundo o qual os universais são meros nomes, e a realidade só se refere ao particular do mundo físico atual (Guilherme de Occam, século XIV).


William of Ockham (ou Occam) (1285?-1349?), filósofo inglês mais conhecido por uma regra que leva seu nome: "a navalha de Occam". Essa regra, de teor científico e filosófico, afirma que as entidades não devem proliferar desnecessariamente, o que é interpreta-do como significando que, entre teorias em competição, se deve preferir a mais simples às mais complexas, ou que as explicações de fenômenos desconhecidos têm, em primeiro lugar, que ser expressas em termos de quantidades conhecidas.
1288 in Ockham (near Ripley, Surrey), England
Died: 9 April 1348 in Munich, Bavaria (now Germany)

No século XIX o termo "realismo" surgiu principalmente nas artes como reação ao romantismo. Este último apresentava uma atitude holística, orgânica, intuitiva, idealizadora, que em ciência influenciou a Naturphilosophie (início do século: Goethe, Schelling, Oersted) e o energeticismo (final do século: Mach, Ostwald). A reação realista nas artes realçava o cotidiano e o social, tendendo a ser politicamente mais progressista. Em ciência, o realismo podia ser associado ao mecanicismo e ao atomismo, com uma valorização da quantificação e do método hipotético-dedutivo.

No século XX, a dicotomia tradicional em Filosofia da Ciência é entre realismo e positivismo. De acordo com o "positivismo lógico" (anos 20 e 30: M. Schlick, R. Carnap, H. Reichenbach), a frase "a realidade física existiria mesmo que não existisse nenhum observador" é sem-sentido. Para o realista, tal frase não só tem significado (ou sentido) como é verdadeira.

Em filosofia da ciência, o positivismo lógico teve bastante força até o início da década de 1960, mas suas teses iniciais foram paulatinamente abrandadas, à medida que saíram de seu berço vienense e berlinense e se propagaram pelos países de língua inglesa. Na década de 50 iniciou-se uma reação contra o positivismo lógico, centrando-se fogo especialmente no seu "empirismo", a tese de que as observações são bases seguras para se construir a ciência (K. Popper, W. Quine). Por um lado, autores "relativistas" (M. Polanyi, N.R. Hanson, P. Feyerabend, T. Kuhn) atacaram a ênfase excessiva na descrição lógica da ciência, salientando que o conhecimento tem um componente intuitivo, e que ele está sujeito às circunstâncias históricas e sociais. De outro lado, a corrente do "realismo científico" (G. Maxwell, H. Putnam) foi elaborada, e tentaremos esboçá-la adiante.

Em outros campos, fora da filosofia da ciência, o "positivismo" foi também bastante atacado, tendo-se tornando até um termo depreciativo. Este sentido negativo parece ter surgido com as teorias positivistas em Ciências Humanas (inclusive na Educação), como o "behaviorismo" em Psicologia, que simplifica ao máximo a representação que se tem do ser humano, focalizando seu estudo apenas na relação entre estímulo e resposta (os dados "positivos").96 Tal abordagem pode ser usada para se justificar a manipulação e dominação de homens por outros homens, tendo sido bastante criticada, como por exemplo pela Escola de Frankfurt (T. Adorno, J. Habermas etc.). Salientemos então o seguinte: no presente estudo, iremos nos concentrar na discussão entre formas de realismo e anti-realismo nas Ciências Naturais, onde "positivismo" não é necessariamente um termo depreciativo.


2. Os Problemas do Conhecimento

Um ponto crucial para entender as diferentes formas do anti-realismo, ou o que significam os diferentes "ismos" filosóficos, é considerar o tipo de pergunta que cada um responde. Adaptaremos aqui as análises feitas pelo filósofo alemão Johannes Hessen e pelo filósofo-da-ciência finlandês Ilkka Niiniluoto.

Consideremos primeiramente o problema ontológico da existência de uma realidade independente do sujeito ou de uma mente. Já mencionamos que o realismo ontológico afirma a existência desta realidade; a negação desta tese recairia em um "idealismo ontológico", que é mais conhecido como idealismo subjetivista. A forma mais radical desta é o "solpsismo", segundo o qual a realidade se resume ao conteúdo do meu pensamento: a realidade seria uma espécie de sonho em minha mente.. Uma forma menos radical é a doutrina do "esse est percipi" (Berkeley, séc.XVIII), segundo a qual só existe aquilo que é percebido por alguém. Berkeley termina por defender um idealismo objetivo, porque a realidade externa existiria enquanto atividade mental de Deus. Tal idealismo é consistente com o realismo ontológico.

Vemos assim que o idealismo não surge apenas como negação do realismo ontológico. Um idealismo epistemológico98 (que negaria o realismo epistemológico) defenderia a impossibilidade de se conhecer entidades independentes de qualquer sujeito cognoscente. No contexto da Teoria Quântica, porém, utilizam-se os termos positivismo ou "descritivismo" (usado por Niiniluoto). Segundo o positivismo, a teoria descreve apenas observações, e não faz sentido perguntar como é a realidade não-observada (por exemplo, se ocorrem colapsos sem que haja uma medição ou observação).

Voltando às distinções da filosofia tradicional, podemos aceitar a existência de uma realidade exterior e colocar o problema epistemológico que Hessen chama de problema da "essência do conhecimento": é o objeto que determina o sujeito (realismo), ou é o sujeito que determina o objeto do conhecimento (idealismo)? O idealismo transcendental daquele que é considerado o mais importante filósofo moderno, o alemão Immanuel Kant (séc. XVIII), adota uma posição intermediária: aceita a existência de coisas-em-si ("noumeno"), mas considera que a ciência só tem acesso às coisas-para-nós, os "fenômenos". Tais fenômenos, porém, seriam organizados pelo nosso aparelho perceptivo e cognitivo, sendo assim em parte dependentes do sujeito (isso também é defendido pelo idealismo conceitual de N. Rescher, 1973). A causalidade, por exemplo, não existiria na realidade, mas seria uma "categoria do entendimento", uma estrutura cognitiva sem a qual a própria percepção do mundo seria impossível.

No outro extremo, um tipo importante de realismo é o materialismo, para o qual apenas a matéria (e energia) existe ou é real: processos mentais seriam "epifenômenos" causados por processos materiais. O marxismo, uma forma de materialismo, considera que as ações humanas são determinadas pelos aspectos econômicos.

Consideremos agora um outro problema epistemológico, que é o da "possibilidade do conhecimento": pode o sujeito apreender o objeto, pode ele conhecer verdades a respeito do mundo? Diferentes formas de realismo afirmam que sim, enquanto que a negação desta tese se chama ceticismo. Dentre as atitudes intermediárias podemos mencionar o pragmatismo (séc. XIX: C.S. Peirce, W. James), que leva em conta apenas as conseqüências práticas das idéias, e que é uma forma de relativismo. O relativismo considera que nosso conhecimento e as verdades dependem do contexto psicológico e social no qual nos encontramos.

Por fim, consideremos o problema da "origem do conhecimento": é a razão ou é a experiência a fonte e a base do conhecimento humano? O empirismo considera que a única fonte de conhecimento é a experiência. Conhecimento sobre o que existe não pode ser obtido de maneira "a priori". Os significados das idéias seriam redutíveis aos dados da experiência (séc. XVII-XVIII: F. Bacon, J. Locke, D. Hume). O sensorialismo (em inglês: "sensationalism") ou "empirismo radical" enfatiza que as idéias são redutíveis às sensações (sense data), e no final do séc. XIX esta posição foi defendida pelo "empiriocriticismo" de Ernst Mach. A posição de Mach também é considerada uma forma de idealismo subjetivista, devido à tese de que "o mundo consiste apenas de sensações". Uma forma mais pragmática de empirismo é o fisicalismo, para o qual os termos descritivos da linguagem se referem a objetos físicos (não sensações) e suas propriedades, definidas "operacionalmente". Para o operacionismo (década de 1920: P. Bridgman), todo conceito científico é sinônimo do conjunto de operações físicas associados ao processo de medi-lo.

O ponto de vista oposto ao empirismo é o racionalismo (ou melhor, intelectualismo), que defende que o critério de verdade não é sensorial mas intelectual e dedutivo (R. Descartes, séc. XVII). Verdades básicas são evidentes para a razão, e outras verdades são dedutíveis destas. A posição de Kant pode ser considerada intermediária entre o empirismo e o racionalismo.

Para finalizar, tentemos distinguir o positivismo de outras correntes empiristas. Originalmente (séc. XIX: A. Comte) o positivismo salientava a demarcação entre ciência (baseada em "dados positivos"), a metafísica e a religião. Com o positivismo lógico este critério de demarcação passou a ser associado ao significado das proposições. Uma sentença "sem sentido" é aquela para a qual não há um método para verificar se ela é verdadeira ou falsa. Assim, o positivismo suspende o juízo (ou pode até negar) a realidade de entidades cuja existência não é verificável.


3. O Realismo Científico

Concentrar-nos-emos agora na interpretação realista de uma teoria física, que inclui três afirmações básicas:
1) Realismo ontológico: existe uma realidade física que independe do conhecimento e da percepção humana.

2) Realismo científico: As proposições de uma teoria têm "valor de verdade", isto é, são ou verdadeiras ou falsas, de acordo com a teoria da verdade por correspondência. Assim, uma teoria física serve para "explicar" fenômenos em termos da realidade física subjacente, e não apenas para prevê-los.

3) Realidade dos termos teóricos: a teoria pode conter "termos teóricos" que se referem a entidades físicas que não são diretamente observadas.
Além dessas características, costuma-se adicionar mais três afirmações para uma interpretação realista:

4) Realismo metodológico: atingir a verdade é a meta principal da ciência.

5) Realismo convergente (K. Popper): as teorias físicas se aproximam cada vez mais da verdade, sem talvez nunca atingi-la de maneira completa.

6) Inferência para a melhor explicação: a melhor explicação para o sucesso prático da ciência é a suposição de que as teorias científicas são de fato aproximadamente verdadeiras.

A negação de uma ou outra das teses expostas acima constitui formas de anti-realismo, no contexto de teorias científicas. O relativismo nega que existam verdades únicas a serem descobertas pela ciência (anarquismo epistemológico de P. Feyerabend), sendo tudo fruto de uma negociação no âmbito das comunidades científicas (T. Kuhn, nova sociologia da ciência). Esta concepção está por trás da "verdade pragmática" que se opõe à verdade por correspondência.

Uma negação do realismo científico é também feita pelo instrumentalismo, que pode ser "forte" ou "fraco". O instrumentalismo forte nega que as teorias científicas tenham valores de verdade, e que elas expliquem uma realidade subjacente aos dados experimentais. Teorias seriam meramente esquemas lingüísticos que permitem fazer previsões sobre observações, e que organizam estas de maneira econômica.

Já um instrumentalismo fraco não nega que sentenças teóricas (relativas a entidades não-observáveis) tenham valores de verdade, mas nega que isto tenha qualquer importância na ciência (negando a teste 4). 0 que seria importante seria a solução de problemas (L. Laudan) ou a adequação empírica (B. van Fraassen).

A negação da tese 3 recai no descritivismo, que está associada ao positivismo. Uma maneira de negar o realismo convergente (tese 5) é o convencionalismo, defendido na passagem do século por H. Poincaré, segundo o qual a forma particular da teoria adotada tem diversos elementos convencionais, já que outras teorias empiricamente equivalentes são possíveis.

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